julho 15, 2009

Raymond Chandler # 6

Os ventiladores de teto giravam vagarosamente e a luz que atravessava as janelas de vidro produzia caminhos diagonais de poeira flutuante. O livro aberto na mesma página por minutos e o chocolate quente que já esfriava. Sentado no fundo da ampla sala, onde ficavam as mesas de leitura, ela observava minuciosamente pela primeira vez um senhor que lia jornais todas as tardes naquele lugar. Vestia camisa xadrez, calça marrom, usava sapatos escuros muito bem lustrados, uma boina cinza na cabeça e era cego de um olho. A xícara em que bebia seu café era tão branca quanto sua pele e os seus fios de cabelo, onde já lhe faltavam nas têmporas. Parecia sossegado e geralmente só trocava palavras com o bibliotecário e com o servente.
Mas aquela tarde era especial, tinha de ser. Aconteceu quando ele abriu “O longo adeus” de Raymond Chandler, um dos melhores livros que ela já havia lido e que terminado há algumas semanas. Reconheci pela capa e fiquei me perguntando por que ele trocaria os jornais por um livro. Também não sei porque mas sua vontade era grande de ir lá, sentar na frente dele e fazer mil e um comentários. Mais um tempo se passou, terminou seu chocolate já frio, leu mais um capítulo e foi. Desviando da vergonha se aproximou silenciosamente e:
- Com licença, senhor, posso sentar aqui?
Ele respondeu com um sorriso simpático e acenou com a cabeça. Ficou esperando alguma palavra e prontamente perguntou:
- Sabia que esse livro é muito bom? Começou a ler ele agora?
O velho deu uma risada, fechou o livro e disse:
- Eu não leio muito bem, na verdade eu já não enxergo muito. Os anos, meu filho, os anos vão passando e a gente perde tanta coisa…
- Queira me desculpar mas eu vejo sempre o senhor por aqui lendo jornais, achei que fosse muito bom da visão, apesar do seu olho… desculpe. – abaixou a cabeça com vergonha do comentário.
Nos apresentamos.Ele aparentava ser fechado, mas era só fachada, ela descobriu isso com os dias, aliás, em poucos dias se tornaram íntimos. Ele contou a respeito do seu olho esquerdo, ele foi um fuzileiro na Segunda Guerra Mundial e ficou ferido em um combate na Itália, em 1945, onde perdeu seu melhor amigo. Os assuntos sobre livros e jornais foram ficando de lado e começamos a passar as tardes naquela biblioteca conversando sobre suas vidas e histórias incríveis. Certa vez ele contou que durante a guerra, o inverno na Itália estava tão rigoroso para os soldados brasileiros que alguns deles pediam permissão pra ir em algum banheiro, canto ou loja e por lá se suicidavam. Ela descobriu que ele estava muito longe de sua cidade natal, que tinha 85 anos de idade e que vivia de uma aposentadoria a qual sustentava-o em uma vida não tão ruim. Ele tinha um gato.
- E qual o nome do seu gato?
- Meu gato não tem nome, eu só o chamo de gato. Acho que se eu colocar nele um nome vou acabar considerando-o como um amigo e passar a tratá-lo como pessoa. Mas as pessoas sempre vão embora… deixa ele ser apenas uma distração na casa! – disse ele rindo em palavras cansadas.
Interessante é que a relação entre eles ficou tão estreita que ela passou a chamá-lo de amigo e fazer dele confidente dos seus problemas. Estranho é que o velho nunca aparentava problemas, e a medida que os dias iam passando ele ficava mais aberto e mais emotivo, parando de falar sobre guerras para falar de sentimentos. O mundo já se resumia naquela sala, entre as imensas estantes de madeira repletas de livros e os segredos já caminhavam por ali, da boca de um para o ouvido do outro. Ela falou sobre a faculdade e das pessoas que há rejeitavam lá, da pressão dos seus pais, da desarmonia da sua casa. E a voz do seu novo amigo à acalmava:
- Nem todos nessa vida nos olham como pessoa, mas como objeto. Tenta não olhar por esse lado medíocre da vida caso contrário você vai se tornar tão medíocre quanto eles. Os poucos amigos que eu tenho me contam coisas terríveis e boas ao mesmo tempo, cabe a mim escolher o que quero guardar.
E quando ela perguntava sobre seus amigos ele dizia:
- Ah, são bons amigos. Eu os olho todos os dias. Acho que você vai acabar tendo uma certa intimidade com eles também. Um dia você vai conhecê-los melhor.
Há alguns dias ela passou a ir na casa dele ler alguns dos seus contos, porque ele começou a passar mal e já não podia ir muito à biblioteca. Uma gripe muito forte que o deixava na cama enquanto ela lia sentada em uma confortável cadeira de madeira. Ela descobriu também que ele já não tinha mais família mas sempre a recebia com um sorriso tão alegre que a fazia sentir em uma família completa. Ele tornou-se seu melhor amigo, em uma época em que ela não conhecia amigos de verdade. Ele há fazia olhar o mundo com mais simplicidade e calma, há fez sentir importante e compreendida. Não sei se ele sentia o mesmo por ela.
A gripe só piorou e ela se preocupava tanto que quando chegava em casa ligava pra ele e tentava fazê-lo relaxar até pegar no sono. Buscava as frases mais impressionistas e verdadeiras e ele ria do outro lado da linha dizendo:
- Não não, pode parar. Só seja você mesmo e diz que tá comigo mais essa noite. Eu não preciso desses discursos melancólicos. – e ria um riso cansado que há acalmava no seu quarto.

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